terça-feira, 1 de abril de 2008

Análise literária


Quando eu morrer

não quero choros nem gritos

quero à minha cabeceira

um garrafão de cinco litros.

(Torta Ninja, a partir de autor desconhecido)

Autêntica obra-prima da literatura rústica, a composição segue uma linha clássica formal à boa maneira das quadras populares mais genuínas. A este propósito, destaque-se a originalidade da rima, que não obedece a um esquema previamente definido. A convencional rima cruzada (ABAB) cruza apenas o segundo com o quarto verso, facto que atesta a natureza popular inculta e mesmo purista da composição.
Em termos semânticos, assistimos a uma espécie de testamento, onde o sujeito poético dá conta do seu último desejo pré-mortem: não quer ver a sua amada, não quer viajar até ao Oriente, nem tão pouco quer conduzir um Ferrari ou fazer as pazes com o filho com quem não fala há cinquenta anos. Um garrafão de cinco litros, caros leitores. Desejo simples de um ser humano modesto, rude, de gostos singelos e campesinos.
Esta aparente simplicidade e rudeza esconde todavia um carácter mais complexo do que à partida poderia prever o leitor mais incauto. Na verdade, a morte é um fantasma que aterroriza, um mito por desmistificar, uma entidade poderosa e invencível, cujos efeitos são a dor da perda, o luto, a amargura dos que ficam.
Torta Ninja combate a morte de forma magistral, não se deixando vencer por monstro tão atroz que só provoca “choros e gritos”. O segredo é o combate pela criação de sentimentos opostos: a festa, a alegria, a visita do camarada Baco. Só um deus como Baco poderia desafiar a morte e Torta Ninja sabe disso melhor que ninguém, por isso usa com mestria as suas palavras, que são a mola para um novo conceito de reacção à perda fatal. Baco é personificado num garrafão de tinto - símbolo de sangue e de morte - à espera de explodir no saltar da sua rolha de cortiça. Essa rolha, esse momento, será de apoteose, comprimido mágico contra a dor e a enfermidade sugeridas por termos como “cabeceira”.
O fatalismo está presente em termos como “morrer”, “choros” ou “gritos”, tratando-se, como atrás foi explanado, de um fatalismo dissimulado, o qual transporta uma estética próxima de um Romantismo irónico ou de um Saudosismo de laivos optimistas, típico das gentes do campo. De resto, o tom brejeiro e, de certa forma, de cantiga à desgarrada são sinónimos dessa mesma linha popular.
Mesmo de cariz popular, os versos transmitem uma beleza pura e encantatória, qual requiem que embala qualquer moribundo no seu leito. O poema é quase uma oração, um canto do cisne cujo remate será o saltar da rolha em dia de festa. A morte chegou, mas não se ficará a rir.

(Texto: Rodriguez; Imagem: Baco de Caravaggio)

4 comentários:

J disse...

ganda análise... caracteriza muito bem este maravilhoso poema

Teresa disse...

Ganda "bácoro", esse Torta...;p

Anónimo disse...

Excelente!!! Parabéns!

Anónimo disse...

Foda-se! isto é uma análise q parece q foi feita por um gaijo da Dificuldade de letras!!